sexta-feira, 21 de junho de 2024

A áspera beleza de "O grito controlado", livro de poesia de Jorge Emil - crítica de Mário Alex Rosa


 A áspera beleza de "O grito controlado", livro de poesia de Jorge Emil


Poemas do escritor e ator mineiro expressam a destruição e o apagamento das relações humanas nestes poucos anos do século

Mario Alex Rosa
Especial para o “Estado de Minas”

O título “O grito controlado”, novo livro do poeta Jorge Emil, remete de imediato ao famoso quadro “O grito” de Edward Munch. Como se não bastasse, a imagem da capa traz um “desenho” abstrato com fortes toques em preto que lembra também certas pinturas e desenhos do expressionismo. A figura de Munch grita, mas não ouvimos.

Quem sabe se chegarmos perto do quadro escutaremos o grito mudo daquela figura em desespero. “O grito” talvez seja o primeiro quadro que desejamos ouvir mais que somente vê-lo.

Pensando assim e lendo os 103 poemas de Jorge Emil, será preciso mais que lê-los/vê-los, mas também ouvi-los, pois são construídos numa espécie de armação controlada como se quisesse não expor todas as intempéries da vida e do mundo. Aliás, até que ponto o poeta controla seus gritos em palavras? Até que ponto a forma controla os sentidos possíveis de um poema?

Emil sabe que é impossível, por isso a maioria de seus poemas, com todo o rigor da construção, do equilíbrio sintático, semântico e formal, acaba deixando expostos seus “gritos” contra as aberrações do mundo, dos sentimentos alheios que o inquietam.

Talvez por isso, quando lemos seus poemas há a sensação de uma fala próxima ao pé de ouvido. Todo controle parece se abrir entre o poema e o leitor. Os sentidos se abrem sem perda da construção da forma dos poemas.

Penso que essa habilidade não vem só do ator, daquele que decora textos teatrais, que fala em público, mas de um poeta que conhece o mundo das palavras, sobretudo das “técnicas” e teorias da poesia. Como salienta Fabrício Marques, ao dizer que uma das linhas de força da poesia de Jorge Emil é justamente o ritmo encantatório dos poemas, enraizados nas figuras de linguagem que privilegiam os jogos sonoros, como a paronomásia, a aliteração e a assonância.

Esses recursos não são uma bengala para que o poema se mantivesse firme e fosse uma demonstração fria dos conhecimentos do poeta. Ao contrário disso, o que se acentua são justamente os gritos que o poeta nos coloca para ouvir, mesmo que por via da ironia, daí o tom de sarcasmo em diversos poemas. A razão disso talvez seja um modo de suportar os vinte e poucos anos do novo século já com tanta destruição e apagamento das relações humanas.

Mas o grito controlado não se confina só e a partir desse lugar inóspito do qual Jorge Emil aponta com grandes construções em temas difíceis em equilibrar forma e conteúdo, como em “Anno Domini 2021”, na dor ao indagar de um suicida, em “Homenagem”, ou nas perdas no forte poema “Censo”, que remete à pandemia, como também nessa pequena “série” de poemas: “Confinamentos”, “Trecho de um diário pandêmico”, “Trecho de um pesadelo pandêmico” e “Os recém-pandêmicos”.

Num poeta que publica pouco (são apenas quatro livros em praticamente 25 anos), ainda que em cada conjunto a média seja grande como foi em “O olho itinerante” (2012), 83 poemas, e agora em “O grito controlado”, com 103, justifica-se a quantidade não por causa dos intervalos, mas por se tratar de uma produção cuidadosa e densa, que a cada poema nos faz parar e pensar se não é hora de gritarmos novamente contra as barbáries do novo século.

No entanto, com toda a verve irônica e ainda que pese o modo com que provoca, como nos belos metapoemas, “O grito controlado” traz no seu conjunto a beleza áspera e cuidadosa que esse poeta sabe dar a cada poema escrito e falado.

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ÁSPERO, BELO, ABORDÁVEL

“Manuel Bandeira escreveu sobre um cacto: áspero, belo, intratável. Deste livro atrevo-me a dizer que é belo, áspero, abordável. Não pertence a nenhuma tribo domesticada. Não há quem lendo 'O grito controlado' não se dê conta de sua ira, sarcasmo e dor, mas também das sementes da compaixão que Jorge Emil abriga quase ocultas, quase envergonhadas no livro que muitas vezes nos faz rir de verdade, onde percebemos que ele controla mesmo a exasperação e a dor que partilha conosco. É generoso. Não fez o mundo, mas o carrega.

Acorda os corações sem feri-los (...)”

Trecho do prefácio de Adélia Prado para “O grito controlado”

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CENSO

Poema de Jorge Emil

À cata desse ‘Homem Novo’
em nome da Pátria abstrata,
a Máquina malha e mata
às dezenas de milhões
e, apesar disso, compacto,
persiste algo como um povo.
Algo como uma pessoa
perde três dos seus, ou quatro,
e o mundo se despovoa.

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