sábado, 9 de fevereiro de 2013

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Devoção ao devaneio


Devo tudo ao devaneio.
Devaneio me resolve.
Amei-o desde o início,
ao deparar o primeiro
chato fazendo comício
em meus ouvidos tão jovens.
Veio então o devaneio
e voei até Varsóvia.

Veraneio sempre à mão.
Meu recurso. Meu recreio.
Usufruo sem receio
de que alguém me desaprove.
Provo todo devaneio,
sobretudo quando chove.
Devaneio me absolve,
sobretudo quando odeio.

Livro incrível que releio
num banheiro invisível.
Freio ao tédio que revolve
um calibre de revólver.
Delírio, não. Devaneio.
Ele me comove em cheio.
E me remove. Pro meio
do século dezenove.

Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012

domingo, 4 de abril de 2010

Bem no meio do pátio


Ô geringonça. Começou desengonçada.
Traste. Não se trata de desgaste:
tão logo foi ligada, já era esse trambolho.
Trabalha nem-sei-como, dá trabalho
pra mil mouros. Estoura, estala, solta bolhas.
O dia todo — óleo e olho — é repará-la, ou maquiá-la,
maquinaria precária, preparada pra parar.


Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012

domingo, 1 de novembro de 2009

Cortina


‘O ritmo frenético da metrópole’,
chavão! e salvação de milhões.
Pequenos lugares calmos
tiram as armas da alma.
No ‘corre-corre desumano
do assombroso caos urbano’,
turva-se o horizonte
propenso à contemplação
de nosso imenso desterro.
Estresses são estímulos,
dissímulos do verdadeiro
(e descansado) desespero.

Do livro Pequeno arsenal, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2004

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Transferência


O ônibus lotado
é uma alegria intermediária.
Maior prazer
será descer e pagar
— sem poder —
tantas altíssimas contas
debaixo de um sol imoral!
A praga que me rogaram
tem sabor de fruta fresca.
E amorosamente
espero a febre, o assalto.
Fui agraciado com a leitura de um mau livro
da grossura de uma árvore
caindo sobre mim.
Ileso, pus o poema
pra sofrer em meu lugar.


Do livro Pequeno arsenal, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2004

domingo, 26 de abril de 2009

Caça ao tesouro


Comum. Plebeu.
Um metro e
oitenta e um.
Podre de pobre.
Sempre deveu —

por isso, cobra:
acesso às cifras
e à cor do cobre!
Grita e se dobra.
E sofre e sofre.

Senha e cifra,
o sofrimento
obra, fabrica
a chave que abre
o cofre da cripta.


Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Apagão


Quando a nuvem ultrapreta
toldou o céu em definitivo,
quando a última lâmpada
conformou-se à agonia
e as ocupações — exibicionistas
quase todas — não puderam
prosseguir ou ser vistas,
para onde, para o que nos voltamos?
Não para dentro! que ninguém queria
um escuro ainda mais denso.
Fomos nos agarrando uns aos outros
até formar-se uma assembleia, uma algazarra,
votos incompreensíveis instituindo
o Dia Internacional da Noite.


Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Na última tentativa,


saiu aos gritos mandando o mundo calar o bico.
Mas só o ouviram uns quatro ou cinco
e ele viu que o tomariam por um excêntrico,
um bêbado, e se ririam de tanto ridículo.

Abdicou do ‘restrito círculo de amigos’,
microcosmo macroestrídulo.
Às vezes não fica nem mesmo consigo
pra ouvir o vácuo naquele cubículo.


Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012

O dia múltiplo


Dia galopante e parado,
dia passado três dias antes,
brilhante, ofuscado oásis,
deserto desejado, completo
dia-quase. Tumulto e feriado.
Hoje foi escancarado:
todo o dia estive oculto.
É dia de gandaia e pausa
e aplauso, mas o dia me vaia.
O dia é um presídio libertário;
de aniversário e suicídio
é feito o dia.


Do livro O dia múltiplo, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2000

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Me perdoo por me trair


Oco em mais de uma ocasião,
me deixei tragar pela areia, movediço.
Depois, a exaustão de emergir e emergir
com a sede dos renascidos. Não guardei forças
para julgar-me e punir-me. Por isso
fiquei forte para buscar solo firme.


Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012

domingo, 27 de julho de 2008

Breve elogio do gato


O gato sete pulos o homem sete muros
o gato sete ceias o homem sete fomes
o gato sete sortes sete cortes no homem

Lá vêm os gatos calmos sete vidas
e os homens suicidas sete palmos.


Do livro O dia múltiplo, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2000

quinta-feira, 24 de julho de 2008

O resignado


Corri com tanta revolta
que tombei exausto no lugar exato
donde não saí, dando voltas
idiotas à minha volta.

No afã de ser preciso,
fiz todas, todas as emendas.
Mas perfeita era a versão primeira,
agora extraviada.

Vulcânicos, irrompem os tiques
de nossos pais e dos mais
impensáveis avós, pipocam em nós
e convém não coçar.

Dor e culpa me dão prumo.
Premido por mãos ancestrais,
queira ou não, meu sumo
exala seu cheiro cristão.


Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012

Armadiras da mentilha


‘Minha vida é um rio claro.
Nunca estive tão tranquilo.
Pois que abram meu sigilo
bancal e fiscário!’
— Ariscos e involuntários,
neologismos faíscam
no político que mente.
Eu também costumo urdi-los
ao mentir abertamente:
‘Escancarem a verdade!
Abram, pois, meu coração,
que nada encontrarão
senão perdade e bondão!’


Do livro Pequeno arsenal, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2004

Novo registro de nascimento


Tudo — não só os imprevistos
da semana que entra,
uma dívida futura
que talvez me atormente,
um prenúncio das doenças
reservadas ao final;
tudo — aquele dia obscuro
do ano de oitenta e oito,
o nojo adolescente
pensando o dentro do corpo,
a primeira taquicardia
do primeiro namoro,
o garoto estupefato
diante do avô morto
debaixo do dilúvio;
tudo — estou me afogando
em vésperas —, tudo
está por acontecer.


Do livro Pequeno arsenal, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2004

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Eu, Atlas


Nasce maiúsculo o Vocacionado Otário,
pronto a suster, com osso e músculo, a Cruz, o Globo,
o Sofrimento Coletivo. Bobo: a Grande Dor
é a dor de cada vivo, indivídua, não-cumulativa.

Para o Operário Cioso do Desnecessário,
esta dor, Dor! tão vívida nas costas,
capaz de liquidar qualquer dívida,
maior que as dores todas, agrupadas,

é apenas parte pequena de seu Calvário.



Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012

Bazar


Eu já devia ter partido...
Contudo, ainda sou capaz
de ler revista feminista no dentista
e jornal cultural no recital.
Me conte quantas vezes você pulou da ponte.
Afora ir longe com um tapa, só faço viagens através do mapa.
2 da manhã; estou persuadido
de que não há amor; mas aí
um parente tosse no quarto ao lado.
Eu tu ele e ah bem nós vós eles mas em
verdade ninguém. Mundo louco, não sei
se estás todo oco ou se está tudo
OK. Que entusiasmo: breve serei fantasma.
Sou ruim sim — ó minha cópia
infinitamente melhor que eu próprio.
Sofri o acidente, estou cego?, quero
ser o líder. Rebolou demasiado acabou
perdendo o rebolado. Não sei por que cargas
d’água quase morri de sede.
A minha ótica, longe de ótima, é patética.
Descompreendo a coisa enfática — tu sem migo, eu
sem vosco... Erro tosco de gramática, de amor.
Descoberta um dia
a fonte de toda angústia a fonte de toda
angústia de descobrir.
Eu já devia ter partido... Não houve jeito:
sobrevivi. A culpa é do comprimido.


Do livro O dia múltiplo, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2000

Oco


Sei que a História me esmaga
embora eu não saiba História.
Se soubesse, lograria
escapar ao peso dela?

Mas como hei de apreendê-la
e entrever escapatória?
Minha própria historiazinha
já me escapou à memória —


Do livro Pequeno arsenal, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2004

Biografia


No começo sente apenas que é uma cabeça.
Quando lhe dizem ‘cresça’, passa
a dar notícia da garganta
(quiçá das omoplatas),
canta, articula palavras.
Desce a brinquedos complexos,
a posse do peito, a presença do sexo.
Lentamente as longas coxas.
Dois joelhos no meio das pernas,
da vida. Declive, canelas. E os pés
percutindo no chão até
a transformação em raiz.


Do livro Pequeno arsenal, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2004

terça-feira, 3 de junho de 2008

A festa surpresa


‘O melhor que você faz
é jamais olhar pra trás.’
Foi o que disse a voz
uivante da sensatez.

Mas eis que o passado atroz
ao meu olhar se desfaz,
pulverizando-se. Zás!
Vira uma nuvem de giz.

Antes, durante, após,
existiu só esta paz
envolvida em pó-de-arroz
que nem em sonho supus.

Da névoa, dos cafundós,
os amigos que não fiz
surgem todos de uma vez.



Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012