segunda-feira, 28 de julho de 2008

Me perdoo por me trair


Oco em mais de uma ocasião,
me deixei tragar pela areia, movediço.
Depois, a exaustão de emergir e emergir
com a sede dos renascidos. Não guardei forças
para julgar-me e punir-me. Por isso
fiquei forte para buscar solo firme.


Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012

domingo, 27 de julho de 2008

Breve elogio do gato


O gato sete pulos o homem sete muros
o gato sete ceias o homem sete fomes
o gato sete sortes sete cortes no homem

Lá vêm os gatos calmos sete vidas
e os homens suicidas sete palmos.


Do livro O dia múltiplo, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2000

quinta-feira, 24 de julho de 2008

O resignado


Corri com tanta revolta
que tombei exausto no lugar exato
donde não saí, dando voltas
idiotas à minha volta.

No afã de ser preciso,
fiz todas, todas as emendas.
Mas perfeita era a versão primeira,
agora extraviada.

Vulcânicos, irrompem os tiques
de nossos pais e dos mais
impensáveis avós, pipocam em nós
e convém não coçar.

Dor e culpa me dão prumo.
Premido por mãos ancestrais,
queira ou não, meu sumo
exala seu cheiro cristão.


Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012

Armadiras da mentilha


‘Minha vida é um rio claro.
Nunca estive tão tranquilo.
Pois que abram meu sigilo
bancal e fiscário!’
— Ariscos e involuntários,
neologismos faíscam
no político que mente.
Eu também costumo urdi-los
ao mentir abertamente:
‘Escancarem a verdade!
Abram, pois, meu coração,
que nada encontrarão
senão perdade e bondão!’


Do livro Pequeno arsenal, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2004

Novo registro de nascimento


Tudo — não só os imprevistos
da semana que entra,
uma dívida futura
que talvez me atormente,
um prenúncio das doenças
reservadas ao final;
tudo — aquele dia obscuro
do ano de oitenta e oito,
o nojo adolescente
pensando o dentro do corpo,
a primeira taquicardia
do primeiro namoro,
o garoto estupefato
diante do avô morto
debaixo do dilúvio;
tudo — estou me afogando
em vésperas —, tudo
está por acontecer.


Do livro Pequeno arsenal, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2004

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Eu, Atlas


Nasce maiúsculo o Vocacionado Otário,
pronto a suster, com osso e músculo, a Cruz, o Globo,
o Sofrimento Coletivo. Bobo: a Grande Dor
é a dor de cada vivo, indivídua, não-cumulativa.

Para o Operário Cioso do Desnecessário,
esta dor, Dor! tão vívida nas costas,
capaz de liquidar qualquer dívida,
maior que as dores todas, agrupadas,

é apenas parte pequena de seu Calvário.



Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012

Bazar


Eu já devia ter partido...
Contudo, ainda sou capaz
de ler revista feminista no dentista
e jornal cultural no recital.
Me conte quantas vezes você pulou da ponte.
Afora ir longe com um tapa, só faço viagens através do mapa.
2 da manhã; estou persuadido
de que não há amor; mas aí
um parente tosse no quarto ao lado.
Eu tu ele e ah bem nós vós eles mas em
verdade ninguém. Mundo louco, não sei
se estás todo oco ou se está tudo
OK. Que entusiasmo: breve serei fantasma.
Sou ruim sim — ó minha cópia
infinitamente melhor que eu próprio.
Sofri o acidente, estou cego?, quero
ser o líder. Rebolou demasiado acabou
perdendo o rebolado. Não sei por que cargas
d’água quase morri de sede.
A minha ótica, longe de ótima, é patética.
Descompreendo a coisa enfática — tu sem migo, eu
sem vosco... Erro tosco de gramática, de amor.
Descoberta um dia
a fonte de toda angústia a fonte de toda
angústia de descobrir.
Eu já devia ter partido... Não houve jeito:
sobrevivi. A culpa é do comprimido.


Do livro O dia múltiplo, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2000

Oco


Sei que a História me esmaga
embora eu não saiba História.
Se soubesse, lograria
escapar ao peso dela?

Mas como hei de apreendê-la
e entrever escapatória?
Minha própria historiazinha
já me escapou à memória —


Do livro Pequeno arsenal, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2004

Biografia


No começo sente apenas que é uma cabeça.
Quando lhe dizem ‘cresça’, passa
a dar notícia da garganta
(quiçá das omoplatas),
canta, articula palavras.
Desce a brinquedos complexos,
a posse do peito, a presença do sexo.
Lentamente as longas coxas.
Dois joelhos no meio das pernas,
da vida. Declive, canelas. E os pés
percutindo no chão até
a transformação em raiz.


Do livro Pequeno arsenal, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2004