quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Apagão


Quando a nuvem ultrapreta
toldou o céu em definitivo,
quando a última lâmpada
conformou-se à agonia
e as ocupações — exibicionistas
quase todas — não puderam
prosseguir ou ser vistas,
para onde, para o que nos voltamos?
Não para dentro! que ninguém queria
um escuro ainda mais denso.
Fomos nos agarrando uns aos outros
até formar-se uma assembleia, uma algazarra,
votos incompreensíveis instituindo
o Dia Internacional da Noite.


Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Na última tentativa,


saiu aos gritos mandando o mundo calar o bico.
Mas só o ouviram uns quatro ou cinco
e ele viu que o tomariam por um excêntrico,
um bêbado, e se ririam de tanto ridículo.

Abdicou do ‘restrito círculo de amigos’,
microcosmo macroestrídulo.
Às vezes não fica nem mesmo consigo
pra ouvir o vácuo naquele cubículo.


Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012

O dia múltiplo


Dia galopante e parado,
dia passado três dias antes,
brilhante, ofuscado oásis,
deserto desejado, completo
dia-quase. Tumulto e feriado.
Hoje foi escancarado:
todo o dia estive oculto.
É dia de gandaia e pausa
e aplauso, mas o dia me vaia.
O dia é um presídio libertário;
de aniversário e suicídio
é feito o dia.


Do livro O dia múltiplo, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2000

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Me perdoo por me trair


Oco em mais de uma ocasião,
me deixei tragar pela areia, movediço.
Depois, a exaustão de emergir e emergir
com a sede dos renascidos. Não guardei forças
para julgar-me e punir-me. Por isso
fiquei forte para buscar solo firme.


Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012

domingo, 27 de julho de 2008

Breve elogio do gato


O gato sete pulos o homem sete muros
o gato sete ceias o homem sete fomes
o gato sete sortes sete cortes no homem

Lá vêm os gatos calmos sete vidas
e os homens suicidas sete palmos.


Do livro O dia múltiplo, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2000

quinta-feira, 24 de julho de 2008

O resignado


Corri com tanta revolta
que tombei exausto no lugar exato
donde não saí, dando voltas
idiotas à minha volta.

No afã de ser preciso,
fiz todas, todas as emendas.
Mas perfeita era a versão primeira,
agora extraviada.

Vulcânicos, irrompem os tiques
de nossos pais e dos mais
impensáveis avós, pipocam em nós
e convém não coçar.

Dor e culpa me dão prumo.
Premido por mãos ancestrais,
queira ou não, meu sumo
exala seu cheiro cristão.


Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012

Armadiras da mentilha


‘Minha vida é um rio claro.
Nunca estive tão tranquilo.
Pois que abram meu sigilo
bancal e fiscário!’
— Ariscos e involuntários,
neologismos faíscam
no político que mente.
Eu também costumo urdi-los
ao mentir abertamente:
‘Escancarem a verdade!
Abram, pois, meu coração,
que nada encontrarão
senão perdade e bondão!’


Do livro Pequeno arsenal, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2004

Novo registro de nascimento


Tudo — não só os imprevistos
da semana que entra,
uma dívida futura
que talvez me atormente,
um prenúncio das doenças
reservadas ao final;
tudo — aquele dia obscuro
do ano de oitenta e oito,
o nojo adolescente
pensando o dentro do corpo,
a primeira taquicardia
do primeiro namoro,
o garoto estupefato
diante do avô morto
debaixo do dilúvio;
tudo — estou me afogando
em vésperas —, tudo
está por acontecer.


Do livro Pequeno arsenal, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2004

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Eu, Atlas


Nasce maiúsculo o Vocacionado Otário,
pronto a suster, com osso e músculo, a Cruz, o Globo,
o Sofrimento Coletivo. Bobo: a Grande Dor
é a dor de cada vivo, indivídua, não-cumulativa.

Para o Operário Cioso do Desnecessário,
esta dor, Dor! tão vívida nas costas,
capaz de liquidar qualquer dívida,
maior que as dores todas, agrupadas,

é apenas parte pequena de seu Calvário.



Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012

Bazar


Eu já devia ter partido...
Contudo, ainda sou capaz
de ler revista feminista no dentista
e jornal cultural no recital.
Me conte quantas vezes você pulou da ponte.
Afora ir longe com um tapa, só faço viagens através do mapa.
2 da manhã; estou persuadido
de que não há amor; mas aí
um parente tosse no quarto ao lado.
Eu tu ele e ah bem nós vós eles mas em
verdade ninguém. Mundo louco, não sei
se estás todo oco ou se está tudo
OK. Que entusiasmo: breve serei fantasma.
Sou ruim sim — ó minha cópia
infinitamente melhor que eu próprio.
Sofri o acidente, estou cego?, quero
ser o líder. Rebolou demasiado acabou
perdendo o rebolado. Não sei por que cargas
d’água quase morri de sede.
A minha ótica, longe de ótima, é patética.
Descompreendo a coisa enfática — tu sem migo, eu
sem vosco... Erro tosco de gramática, de amor.
Descoberta um dia
a fonte de toda angústia a fonte de toda
angústia de descobrir.
Eu já devia ter partido... Não houve jeito:
sobrevivi. A culpa é do comprimido.


Do livro O dia múltiplo, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2000

Oco


Sei que a História me esmaga
embora eu não saiba História.
Se soubesse, lograria
escapar ao peso dela?

Mas como hei de apreendê-la
e entrever escapatória?
Minha própria historiazinha
já me escapou à memória —


Do livro Pequeno arsenal, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2004

Biografia


No começo sente apenas que é uma cabeça.
Quando lhe dizem ‘cresça’, passa
a dar notícia da garganta
(quiçá das omoplatas),
canta, articula palavras.
Desce a brinquedos complexos,
a posse do peito, a presença do sexo.
Lentamente as longas coxas.
Dois joelhos no meio das pernas,
da vida. Declive, canelas. E os pés
percutindo no chão até
a transformação em raiz.


Do livro Pequeno arsenal, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2004

terça-feira, 3 de junho de 2008

A festa surpresa


‘O melhor que você faz
é jamais olhar pra trás.’
Foi o que disse a voz
uivante da sensatez.

Mas eis que o passado atroz
ao meu olhar se desfaz,
pulverizando-se. Zás!
Vira uma nuvem de giz.

Antes, durante, após,
existiu só esta paz
envolvida em pó-de-arroz
que nem em sonho supus.

Da névoa, dos cafundós,
os amigos que não fiz
surgem todos de uma vez.



Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012

terça-feira, 27 de maio de 2008

Elogio do esforço


Vale a pena tornar tudo tortuoso, adornar
com folhas de chumbo a cabeça confusa
e fazer a volta que serpenteia e se afasta
do atalho que chama, cheio de grama.

Se podemos nos bifurcar em dúvidas, errar
o alvo próximo e acertar o inocente difuso na lonjura;
se a discussão, além de inútil, pode ser interminável
quando as partes simplesmente não se escutam.

Tudo é tão fácil! O difícil sou eu que faço —
o máximo cansaço já no início do caminho.


Do livro Pequeno arsenal, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2004

Solução pela água


Estão esmurrando a porta
desde o início dos tempos.
Banho infindável
que finda discursos
e impede que eu ouça
mínimos ruídos
a milímetros de mim.
O vapor ritual
mitiga lutas internas
tal como a chuva
acalma a terra
e apruma o homem.
Água, porém, desidrata —
revelou o dermatologista.
Um choque pra quem queria,
no fundo, que o mundo fosse
o fundo de um lago.


Do livro Pequeno arsenal, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2004

segunda-feira, 26 de maio de 2008

A aventura


Primeiro
julguei fossem
formigas: mas formigas
sabedoras do risco,
estranhamente íntimas.
Admirável expedição
de homens tontos
nas escarpas,
aranhas teimosas
à cata de algum
prazer incrustado
nas lacerações
fartas em desenhos,
símbolos do perigo
de viver. — Quantos
despencam a cada jornada.
Os que restam
mantêm-se em tamanha
consciência do seu risco
que só lhes resta tomar distância
do eco da morte despenhada.
E sobem.


Do livro O dia múltiplo, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2000

sábado, 17 de maio de 2008

O acidentado


Desprezo — era o seu departamento.
Até sair ileso da capotagem.
Apartamento, comportamento, compartimentos:
quem quase virou reportagem,
quem quase deixou o mundo
arruma coragem pra deixar,
por ora, tudo fora de lugar.
Teve medo, e muito. Escapou
de ficar mudo. Quer mudar.


Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012

Árido


Lenta memória.
Penso lembrar:
um par de histórias;
algum lugar;

algum luar
secando a rua;
um mar de luas
molhando o beco.

Mais? Que eu me lembre...
uns poucos ecos.
E chuva sempre.
E eu sempre seco.

Do livro O dia múltiplo, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2000

Ameaça


A paciência que se perde e que não volta.
Inocência era verde, madurou, sumiu.
Mortinhos os poetas de que gostas.
Gente sumida, nunca mais, animais
de estimação, silêncios
atrás de portas. Só os teus gritos
— a um tempo longínquos e horrendos —
continuam sendo, encerrados no sótão.
Se eu abrir,
eles voltam.


Do livro O dia múltiplo, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2000

sexta-feira, 16 de maio de 2008

A epidemia

A fome come a doçura do olho
e esfalfa o resto, da testa ao queixo;
deixa tantos sinais de desgosto,
torna todos os rostos iguais.

Tão violento é o crescimento dos famintos
indo e vindo nos labirintos tóxicos
que sinto medo de ser o próximo:
já não reconheço ninguém.


Do livro Pequeno arsenal, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2004

quinta-feira, 15 de maio de 2008

SERES-CAMADAS,
cascas sobre
cascas sob as quais
calamos o escarcéu.

Entre mim e o outro
jamais faltem véus,
filtro e distância:
para nos aproximarmos.

É mesmo uma missão,
ô vigia de fronteira,
instaurar a censura
entre o só e o social.

Pois dentro da pele,
ele — o louco
o tempo todo
na tempestade.


Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Ana Beatriz Felícia


‘Eu sou feliz o dia todo, todo dia.
Me canso! Nem criança é assim.
Deve ser um tipo raro de epilepsia.’

Querida, você avalia
quantos avaros dariam a vida
pra sofrer essa avaria?


Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012